Guarda-chuvas fechados

Há muito boa gente que se recusa a abrir um guarda-chuva dentro de casa para não chamar a desgraça. José Pereira, o armazenista de Vila Verde, abre o guarda-chuva nas páginas interiores do JN, para mostrar a desgraça de 140 mil guarda-chuvas fechados à espera que chova. A indústria dos guarda-chuvas chegou a florescer no Minho mas, como lembra a reportagem de Pedro Vila-Chã, o negócio foi secando com a "invasão" chinesa e com a perda de importância da sombrinha no passeio domingueiro. José Pereira tem 140 mil guarda-chuvas armazenados, "são muitos milhares de euros empatados à espera que chova". Um guarda-chuva fechado tem pouca utilidade fora das velhas histórias de espionagem. Não ocorreria, nem mesmo a Magritte, colocar o copo de água das "Férias de Hegel" sobre um guarda-chuva fechado. Estes 140 mil guarda-chuvas de Vila Verde são,postos assim os factos e a meteorologia, um desalento surreal. Mas se o céu desabar, de repente, vai ser preciso repôr os stocks. O armazenista está em prontidão inquieta. Assim chova, tudo se comporá. Tal como no poema que João Cabral de Melo Neto dedicou a Drummond, são poucas as circunstâncias para as quais a umbrela não seja resposta adequada.

Só não há - diz o poema - guarda-chuva contra o poema, " subindo de regiões onde tudo é surpresa/como uma flor mesmo num canteiro". E também não há guarda-chuva contra o amor, nem contra o tédio, nem contra o tempo.

Nem contra o mundo, anota João Cabral de Melo Neto: "Não há guarda-chuva/ contra o mundo/ cada dia devorado nos jornais/sob as espécies de papel e tinta".

E esse é o elemento perturbador nesta reportagem. Ao abrir o guarda-chuva dentro da casa que um jornal também é, na esquina de duas assoalhadas tão sopradas pela crise, a da Economia e a do Mundo (contra o qual nada pode o poema), o armazenista de umbrelas poderá estar chamando a desgraça para um lugar já ameaçado, "sob as espécies de papel e tinta".

Percebe-se a intenção dos repórteres do JN, sacudindo para longe superstição e desalento. É isso que procuramos ao folhear um jornal, ao percorrer as suas assoalhadas: a notícia que se possa abrir como um guarda-chuva imune a todos os sortilégios. Ainda que, tal como o poema de João Cabral de Melo Neto, pouco possa a notícia contra a conjugação dos elementos aziagos.

Fernando Alves escreve no português anterior ao acordo ortográfico.

09-03-2012 - TSF - Sinais (Áudio)

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